Hafnia é um género de bactérias pertencentes à família das enterobactérias. O nome refere-se a Hafnia, nome latino de Copenhaga.
As Hafnia são bactérias da flora digestiva humana e animal, também presentes no meio-ambiente. Hafnia é frequentemente confundida com Salmonella cujas características bioquímicas são próximas, mas a ação lítica de bacteriófagos específicos permite distingui-los.
A principal espécie conhecida, Hafnia alvei, é uma bactéria característica do trato gastrointestinal humano e normalmente não-patogénica. É utilizada como fermento lático pela indústria láctea, e mais recentemente como probiótico (inclusive num produto de complemento alimentar para a regulação do apetite e perda de peso).
O género Hafnia é um dos 40 géneros que compõem atualmente a família das Enterobactérias.
Embora descrita pelo biólogo dinamarquês Vagn Moller desde 1954 [1],a legitimidade deste grupo foi constantemente posta em causa ao longo das duas décadas seguintes, frequentemente designada por sinónimos tais como Enterobacter alvei, Enterobacter aerogenes subsp. hafniae e Enterobacter hafniae, mas a bactéria é sobretudo referenciada na literatura pelo nome atual, Hafnia alvei .[2]
Em 1977, um estudo concluiu que no fim do fabrico do “camembert”, a Hafnia alvei continua a ser a espécie dominante. Hafnia alvei é uma estirpe psicrotrófica, que pode desenvolver-se a temperatura baixa, o que significa que não pode desenvolver-se durante a fase de armazenamento do queijo, contrariamente à E. coli [3].
Em 1983, foi descoberta a família das Enterobactérias no “camembert” acabado de produzir [4]: 51% das Enterobactérias foram classificadas como sendo estirpes Hafnia alvei contra apenas 9% classificadas como Escherichia coli. Estes autores também demonstraram que a Hafnia alvei pode ser encontrada com uma concentração elevada no queijo (até 107 UFC/g), no leite cru e os queijos com base no leite pasteurizado.
Alguns anos mais tarde, em 1987, a Hafnia alvei foi identificada por uma equipa espanhola em leite cru de ovelha e representava 6,5% do total das Enterobacteriaceae.[5]
Em 1987, cientistas americanos que estudavam as Brassicaceae encontraram Hafnia alvei. Ao analisarem a microflora da couve frisada acabada de colher, pensaram que a origem da Hafnia alvei era uma contaminação do solo.[6]
Em 2004, cientistas mexicanos isolaram a Hafnia alvei (entre outras bactérias tais como a Lactobacillus acidophilus ou plantarum) de Pulque, uma bebida tradicional fabricada à base de maguei fermentada (também conhecida como agave).[7]
Em 2014, um estudo conjunto sobre a afinação do queijo, entre um laboratório do INRA e uma universidade italiana, identificou a H. alvei no leite cru utilizado no fabrico do queijo tradicional Caciocavallo Pugliese.[8]
A Hafnia alvei também se encontra nos alimentos fermentados, mesmo não sendo produtos lácteos. Nos últimos anos foi identificada em numerosos pratos tradicionais em todo o mundo.
Em 2014, a Hafnia alvei foi identificada no “aakhone”, um prato tradicional do norte da Índia à base de farinha de soja fermentada.[9]
A Hafnia também foi identificada nos grãos de café fermentados da Etiópia e no Ohio nos Estados Unidos [10]. Investigadores americanos estudaram o microbioma dos grãos de café e identificaram a Hafnia alvei entre outras numerosas estirpes e espécies, das quais 13 espécies de Enterobacteriales [11]. Este estudo sublinhou que a riqueza do microbioma dos grãos estava associada ao processo de fermentação, assim como à qualidade do café. A família de bactérias mais frequentemente identificada era a das Enterobacteriales que continham Hafnia alvei. Esta família é frequentemente encontrada em meios húmidos e ricos em elementos nutritivos semelhantes aos do café. Deste modo, esta bactéria poderia ter um papel essencial na fermentação.
A Hafnia alvei também foi identificada no Kimchi comercial, uma refeição tradicional coreana à base de couve asiática, de rabanete, especiarias e marisco fermentado e salgado. Os cientistas sugerem que neste caso a origem da Hafnia é o marisco fermentado.[12]
Finalmente, a Hafnia alvei também foi isolada a partir de produtos com base em carne, especialmente carne de vaca refrigerada, devido à presença da Hafnia alvei nos bovinos abatidos. É possível identificá-la juntamente com E. Coli no chouriço (chorizo), uma salsicha espanhola semi-seca e fermentada.[7] A salsicha fermentada fabricada em Espanha também poderá conter a estirpe Hafnia alvei, responsável pela produção de histamina, essencial à maturação.[13]
A maior parte dos textos de referência em microbiologia listam os mamíferos, os pássaros, os répteis, os peixes, o solo, a água, as águas residuais e os alimentos como fontes a partir das quais as bactérias Hafnia alvei podem ser recuperadas.
As vias gastrointestinais dos animais e em especial dos mamíferos, parecem ser um habitat ecológico muito comum para estas bactérias. Estudos de paléomicrobiologia permitiram a identificação da H. alvei proveniente de amostras de massa intestinal e de sedimentos recolhidos em restos de mamutes com 12 000 anos no Michigan e no Ohio. Num estudo que abrangeu 642 mamíferos australianos, Gordon e FitzGibbon [14] detetaram que a H. alvei era a terceira espécie entérica mais comumente identificada depois da Escherichia coli e da E. cloacae.
Também foram encontradas Hafniae esporadicamente nas amostras de dejetos de animais de grupo recolhidas nas áreas dos parques nacionais nos Estados Unidos e em 7% doe ursos Grizzli e ursos pretos testados.[15]
Entre as espécies avícolas, a H. alvei foi frequentemente isolada nas aves de rapina, incluindo falcões, mochos e o abutre indiano; mesmo na ferreirinha alpina de grande altitude que não têm praticamente qualquer contacto com os humanos, a Hafnia foi isolada em frequências de 3% a 16%.[16]
As outras fontes da H. alvei incluem os répteis (serpentes e escincidos), os invertebrados, os insetos, os peixes e os morcegos.
Conforme várias publicações, a Hafnia alvei encontra-se como espécie dominante durante a maturação do queijo de leite cru.[8][17]
A Hafnia alvei é uma bactéria psicrotrófica, originária do leite cru e continua a desenvolver-se nos queijos como o camembert. A multiplicação é um fator-chave no processo de fermentação e de maturação do queijo.
A estirpe Hafnia alvei está registada como micro-organismo utilizável na alimentação pela EFFCA (European Food & Feed Cultures Association).
Desde 1979, estudos sobre o queijo francês permitiram a identificação das correlações entre o desenvolvimento da Hafnia alvei e os parâmetros químicos aquando do fabrico do queijo. Vários investigadores consideraram que o nível de H. alvei atingia 107 CFU/g no fim do processo de maturação e mostraram que a curva de desenvolvimento estava estreitamente relacionada a um aumento do pH. Do mesmo modo, Mounier e al. mediram uma população em H. alvei de cerca de 109 CFU/g num modelo de queijo para barrar (queijo de pasta mole).[17]
Um estudo científico aprofundado dos queijos tradicionais consumidos há anos realça a presença de Hafnia alvei nos produtos lácteos desde há mais de trinta anos.
Concluindo, níveis abundantes de Hafnia alvei podem ser detetados no queijo de leite cru e têm um papel importante na aromatização do queijo devido do respetivo impacto na acidez e capacidade de produção de aminoácidos livres.
A Hafnia pode ser adicionada intencionalmente durante o processo de fabrico do queijo ou já existe como componente da microflora do leite. O microorganismo contribui para o processo de fermentação e também de maturação dos queijos. Estudos metabólicos revelaram que a bacteria é muito essencial para o processo de maturação e desenvolvimento do sabor típico do queijo.
Devido às suas propriedades que afetam a acidez e o sabor, a H. alvei é utilizada no fabrico de vários queijos, tais como o cheddar, o gouda e o camembert, assim como no Livarot e outros queijos de leite cru. A H. alvei também é comercializada na União Europeia como cultura de maturação para o “camembert” de aroma forte (Aroma-Prox AF 036, fornecido pela Bioprox SAS, França) ou como mistura de microrganismos para o aroma de queijo de pasta mole (Choozit Cheese cultures ARO 21 -HA LYO 10 D, fornecido pela Danisco, Dinamarca).
Um estudo levado a cabo em 2013 sobre o ecossistema de queijos modelo realçou o papel da Hafnia alvei na inibição do desenvolvimento da estirpe O26: H11 de E. coli sem modificação das concentrações de pH ou de ácido lático. Hafnia alvei produz uma pequena quantidade de amina biogénicas tais como a putrescina e a cadaverina, mas estas não afetaram o nível global dos compostos aromáticos voláteis.[18]
O interesse pelo papel da Hafnia alvei no fabrico do queijo continua a aumentar. Em 2007, um projeto da Agence Nationale de la Recherche (Agência Nacional de Investigação) (GRAMME) avaliou as vantagens e os riscos da Hafnia alvei na produção do queijo e estudou as outras funções potenciais para aumentar a respetiva aplicação a outros produtos alimentares.
A hafnia desenvolve-se em meios com 2 a 5% de cloreto de sódio, uma gama de pH de 4,9 a 8,25 e gradientes térmicos de 4 a 44 °C [19]; a temperatura ótima para o desenvolvimento foi de 35 °C.[1]
Da opinião geral, quase 100 % das estirpes de hafnia desenvolvem-se em geloses MacConkey, Hektoen, eosina, azul de metileno e xilose-lisina-desoxicolato, que são todos eles meios seletivos a moderadamente seletivos.[19]
Nos meios seletivos mais inibidores, 25 a 60% das estirpes não se desenvolvem em gelose Salmonela-Shigela (SS), ao passo que 75 a 100% dos isolatos são inibidos num meio verde brilhante. As estirpes clássicas de H. alvei são lactose e sacarose negativas e como tais, surgem como colónias não nos meios de isolamento entérico.[2]
Nas geloses moderadamente seletivas, surgem em geral como colónias lisas de grandes dimensões, convexas e translúcidas de 2 a 3 mm de diâmetro com um bordo inteiro; algumas podem apresentar uma fronteira irregular.[2]
A imunoquímica dos lipopolisacarídeos da Hafnia é extremamente complicada. Todos os lipopolisacarídeos da H. alvei parecem conter glucose, glucosamina, heptose e ácido 3-deoxioctulosónico. Alguns LPS contêm também outros amino-açúcares ou hidratos de carbono tais como manose, galactose, galactosamina e manosamina. A estrutura oligossacarídica de base de determinadas estirpes consiste numa estrutura hexassacarídica idêntica, composta por dois resíduos D-glucose, de três resíduos LD-heptose e um resíduo ácido 3-deoxioctulosónico. Existe uma grande diversidade serológica e imunológica neste género, e a investigação continua nesta área.[20]
Em 1969, Barbe descreveu dois biotipos de H. alvei com base na fermentação da arabinose D e salicina e na hidrólise de esculina e de arbutina. Um dos desafios que os microbiologistas enfrentam consiste em tentar desenvolver ensaios bioquímicos que permitissem distinguir facilmente a maioria das estirpes do grupo 1 (H. alvei sensu stricto) dos isolatos do grupo 2 (espécies não denominadas Hafnia). Estes dois grupos podem presentemente ser distinguidos uns dos outros através de uma série de testes. Não sendo qualquer dos testes totalmente discriminatório. No entanto, a mobilidade em 24 horas é presentemente o melhor indicador do grupo (grupo 1, 9% positivo, grupo 2, 100% positivo).[2]
Hafnia produz uma proteína chamada Caseinolytic Protease B ( ClpB ), que demonstrou imitar o hormônio α-MSH que está envolvido na a sensação de saciedade.[21]
Ficou demonstrado que determinadas bactérias Enterobacteriacae, tais como a Hafnia alvei, regulam naturalmente o apetite.[22]
Em 2020, os resultados de um estudo clínico de 12 semanas que comparava a ingestão oral da estirpe HA45597 e um placebo [23], foram publicados durante o Virtual Congress on Clinical Nutrition and Metabolism (ESPEN). Este estudo prospetivo, multicêntrico, em dupla ocultação controlado por placebo e randomizado em 236 voluntários com excesso de peso (25 e 30 kg/m2) confirma clinicamente os dados pré-clínicos. Ambos braços seguiram um regime hipocalórico acompanhado quer pelo probiótico Hafnia alvei HA4597, quer por um placebo. O critério de avaliação principal relativo à perda de peso foi atingido: existe uma diferença estatística significativa a favor do probiótico na proporção de sujeitos que perderam pelo menos 3% do respetivo peso corporal no fim das 12 semanas. Entre os critérios secundários atingidos, um aumento estatisticamente significativo da sensação de saciedade. Por outro lado, o efeito do probiótico é também superior ao do placebo na redução do perímetro das ancas. Apenas o Hafnia alvei HA4597 surtiu efeito no nível de colesterol e induziu uma redução maior da glicemia do que a observada com o placebo. Finalmente, a estirpe Hafnia alvei HA4597 revelou-se como muito superior ao placebo através da avaliação global das vantagens identificadas tanto pelos médicos investigadores como pelos participantes.
A revista científica Nature qualificou recentemente a estirpe Hafnia alvei HA4597, como probiótico de precisão, isto é, um probiótico cuja estirpe e cujo mecanismo de ação estão perfeitamente descritos e compreendidos.[24]
TargEDys, a empresa francesa que demonstrou que a estirpe Hafnia alvei HA4597 podia estimular a saciedade através da proteína ClpB e ajudar a controlar naturalmente o apetite e a perda de peso, levou a cabo estudos que permitem a comercialização deste probiótico.
As informações sobre a patogenicidade da Hafnia alvei são limitadas. Embora este patogénico tenha sido encontrado em grande número nos excrementos, o líquido articular, o sangue e a urina apresentaram resultados negativos em cultura; o papel das hafniae na doença é discutível.[2]
Isto deve-se provavelmente à fraca ocorrência desta espécie nas doenças humanas e ao facto de não haver sintomas de doença bem definidos especificamente associados à H. alvei. As informações atuais relativas à patogenicidade da Hafnia podem ser examinadas de dois pontos de vista: os fatores de virulência potencialmente ativos nas infeções extraintestinais e os limitados principalmente aos intestinos. Um estudo menciona também que os ratos onde foram injetadas hafniae por via intraperitoneal não sucumbiram à infeção.[2]
A H. alvei é um patogénico humano raro apesar do aumento de atenção da comunidade médica ao longo da última década devido à respetiva associação possível à gastroenterite
Não há correlação clara entre os dados epidemiológicos, clínicos e de laboratório e um papel da Hafnia alvei nas patologias intestinais.
Num estudo que abrangeu 17 isolados de Hafnia alvei ("Enterobacter hafniae") recuperados pela Mayo Clinic de 1968 a 1970, apenas 5 isolados (29%) foram considerados clinicamente significativos. Em todos estes casos, a H. alvei foi identificada como sendo um patogénico secundário (respiratório: 2, abcesso: 3). No conjunto, a idade média das pessoas infetadas ou colonizadas por H. alvei era de 52,9 anos, com uma taxa de homens/mulheres de 1: 1,1.[25]
É interessante sublinhar que a American Type Culture Collection considera que todas as estirpes de Hafnia alvei pertencem ao nível de biossegurança 1 [26]. Além disso, Richard et coll. identificaram a presença de 108 de células viáveis por grama de queijo, o que sugere um consumo diário de mais de 109 de bactérias (cálculo baseado numa porção de 30 g) indicando o perfil correto de segurança da Hafnia alvei no consumo diário.
A segurança da Hafnia alvei nos pacientes imunocompetentes parece muito clara e foi demonstrada desde há mais de 4 décadas até ao presente.
Stock et coll. descrevem um estudo em 76 isolados de H. alvei, quanto à respetiva sensibilidade a 69 antibióticos ou medicamentos. O esquema geral que sobressai neste estudo é que esta bactéria é sensível aos carbapenemas, monobactamas, cloranfenicol, quinolonas, aminoglicosídeos e antifolatos (por exemplo trimetoprima-sulfametoxazol) e resistente à penicilina, à oxacilina e à amoxicilina associada ao ácido clavulânico. A sensibilidade às tetraciclinas e às cefalosporinas é variável.[27]
Um estudo espanhol, envolvendo patogénicos entéricos, também revelou que 32 estirpes de H. alvei eram universalmente sensíveis a todas as quinolonas (incluindo a gemifloxacina e a grepafloxacina), à cefotaxima, à gentamicina, ao cotrimoxazol e ao ácido naladíxico; 78% das estirpes deste estudo eram sensíveis à doxicilina. Algumas estirpes de H. alvei produzem simultaneamente cefalosporinases induzíveis de nível fraco (sensíveis à ceftazidima) e uma atividade de cefalosporinas constitutiva de nível elevado resistente à ceftazidima.
Um estudo clínico que testou a tomada da estirpe H. Alvei HA4597 num indivíduo com excesso de peso demonstrou a inocuidade perfeita deste probiótico.[25]
Hafnia alvei é uma bactéria de qualidade alimentar. Não faz parte do catálogo Novel Food da Comissão europeia [28] mas faz parte da lista dinamarquesa das culturas microbianas autorizadas nos alimentos.[29]
A Hafnia alvei faz parte da lista publicada pela IDF (International Dairy Federation) das culturas alimentares microbianas que provam o nível de segurança muito bom desta estirpe nos produtos alimentares fermentados para utilização a nível mundial.[30]
A estirpe H alvei HA4597 é doravante comercializada em França como complemento alimentar associado ao Zinco e Crómio com a denominação EnteroSatys (TargEDys)[31] e Symbiosys Satylia (Biocodex[32]).
Hafnia é um género de bactérias pertencentes à família das enterobactérias. O nome refere-se a Hafnia, nome latino de Copenhaga.
As Hafnia são bactérias da flora digestiva humana e animal, também presentes no meio-ambiente. Hafnia é frequentemente confundida com Salmonella cujas características bioquímicas são próximas, mas a ação lítica de bacteriófagos específicos permite distingui-los.
A principal espécie conhecida, Hafnia alvei, é uma bactéria característica do trato gastrointestinal humano e normalmente não-patogénica. É utilizada como fermento lático pela indústria láctea, e mais recentemente como probiótico (inclusive num produto de complemento alimentar para a regulação do apetite e perda de peso).